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Cultura não é de graça: a hipocrisia nacional sobre os Direitos de Autor

1. Introdução: A Propriedade Intelectual como Pilar da Economia Criativa

Num mundo cada vez mais movido pela economia do conhecimento e da criatividade, os direitos de autor tornam-se um dos principais instrumentos de justiça económica, social e cultural. As obras artísticas, científicas e digitais não são apenas expressões do engenho humano – são também bens económicos protegidos por lei.

Angola, país com um potencial artístico imenso e uma produção cultural crescente, ainda enfrenta desafios estruturais para assegurar uma protecção efectiva aos seus criadores. A pirataria, a falta de fiscalização, a ausência de sistemas digitais e o desconhecimento generalizado da legislação vigente criam um ambiente onde os direitos autorais são frequentemente desrespeitados.

A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) alerta que “a ausência de mecanismos de protecção de direitos autorais compromete o futuro da inovação e mina a sustentabilidade da cultura”. Para Angola, o momento impõe uma viragem: é preciso criar um modelo integrado de fiscalização e protecção dos direitos de autor, capaz de responder à realidade nacional e às exigências da era digital.

2. O Quadro Legal em Angola e os Desafios na Prática

Angola possui uma base legal clara para a protecção da propriedade intelectual. A Lei n.º 15/2014, sobre os Direitos de Autor e Conexos, estabelece os princípios, deveres e direitos que regulam a criação, o uso e a comercialização de obras protegidas. No entanto, a aplicação prática da lei ainda é limitada.

Um dos casos mais ilustrativos da fragilidade do sistema ocorre no sector comercial. De acordo com esta lei, bares, restaurantes, salões de festas, casas de pasto e estabelecimentos similares que exibem jogos de futebol, filmes ou músicas em televisores ou sistemas de som devem pagar direitos de emissão e exibição pública. A exibição de conteúdos protegidos sem autorização configura violação da lei.

Conforme o artigo 162.º da referida legislação, a autorização deve ser concedida pelos titulares dos direitos ou pelas entidades de gestão colectiva, como a UNAC-SA ou a SADIA. Estes contratos formalizam o uso legítimo das obras e garantem que os autores sejam remunerados pelo seu trabalho. A fiscalização desta obrigação está a cargo do Serviço Nacional dos Direitos de Autor e Conexos (SENADIAC).

Todavia, a realidade mostra que grande parte dos estabelecimentos comerciais em Angola funciona à margem da legalidade, não firmando os contratos devidos, nem pagando os valores estipulados. Isso representa não só uma perda económica para os criadores, como também um desrespeito à lei e um desincentivo à produção cultural.

3. Modelos Internacionais: O que Angola Pode Aprender

A experiência internacional apresenta-nos vários exemplos de boas práticas que Angola pode adaptar à sua realidade:

a) Sistema Estatal de Fiscalização Activo: Países como o Brasil, França e os Estados Unidos da América possuem órgãos especializados que trabalham de forma coordenada com os sistemas judiciais e polícias nacionais. Isto garante uma fiscalização efectiva dos espaços públicos e privados, bem como penalizações rápidas para os infractores.

b) Gestão Colectiva de Direitos Organizada: Nesses países, as sociedades de autores desempenham um papel-chave na cobrança, fiscalização e distribuição dos direitos. Estas entidades representam legalmente os criadores e articulam-se com os meios de comunicação, plataformas digitais e entidades comerciais.

c) Inovação Tecnológica ao Serviço da Fiscalização: Ferramentas de inteligência artificial, blockchain e reconhecimento de conteúdos são cada vez mais usadas para rastrear o uso não autorizado de obras. Isso permite uma fiscalização em tempo real, principalmente no ambiente digital.

d) Educação para a Legalidade Cultural: A cultura de respeito pelos direitos autorais é fomentada desde cedo, por meio de campanhas educativas e formações que envolvem escolas, universidades, empresários e criadores. É um esforço colectivo de cidadania.

4. Um Modelo Integrado para Angola: Proposta Estratégica

Com base nas boas práticas internacionais e na realidade angolana, propõe-se um modelo integrado de fiscalização e protecção, estruturado em cinco eixos fundamentais:

1. Reforço do SENADIAC e Digitalização do Registo de Obras

O SENADIAC deve ser capacitado técnica e financeiramente para cumprir a sua função reguladora. A digitalização do registo autoral é urgente, permitindo que qualquer autor, em qualquer província, possa registar a sua obra com rapidez, segurança e rastreabilidade.

2. Criação de uma Sociedade Nacional de Gestão Colectiva

É necessário promover a criação ou reorganização de uma sociedade de autores angolana funcional e transparente, com representação de músicos, escritores, cineastas, produtores e artistas. Esta sociedade será responsável pela cobrança de direitos nos espaços comerciais e na internet.

3. Fiscalização dos Estabelecimentos Comerciais

Devem ser criadas brigadas conjuntas de fiscalização, entre o SENADIAC, a Polícia Económica e os Governos Provinciais, para garantir que bares, restaurantes e similares estejam legalizados quanto à exibição pública de conteúdos protegidos. A falta de contrato com a UNAC-SA ou SADIA deve implicar sanções claras e progressivas, conforme a Lei n.º 15/2014.

4. Uso de Tecnologias de Monitorização Digital

A implementação de ferramentas de monitorização digital, associadas a bancos de dados de obras registadas, pode facilitar a detecção automática de usos ilegais, tanto em plataformas digitais como em espaços físicos, como festas e estabelecimentos comerciais.

5. Educação e Sensibilização ao Cidadão

Por fim, é fundamental lançar campanhas de sensibilização a nível nacional, com o apoio dos media, artistas e instituições de ensino, promovendo uma cultura de legalidade e respeito pelo trabalho criativo. O lema pode ser: “Criar é um direito. Respeitar também.”

5. Conclusão: Um Novo Paradigma de Justiça Cultural

A construção de um sistema eficaz de protecção dos direitos autorais em Angola é urgente e estratégica. A informalidade não pode continuar a comprometer o talento dos nossos criadores. O país precisa de um modelo moderno, inclusivo e eficaz, capaz de garantir que cada autor, compositor, realizador ou produtor seja justamente recompensado.

Exigir o pagamento de direitos em bares e restaurantes não é apenas uma medida legal – é um acto de justiça cultural. E este princípio deve guiar toda a política pública de protecção à propriedade intelectual em Angola.

Como já afirmava a OMPI, “sem protecção, não há criação; sem criação, não há cultura; sem cultura, não há desenvolvimento”.

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