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A Somália e o registo eleitoral em Mogadíscio: um passo histórico, mas pleno de desafios

O início do registo eleitoral em Mogadíscio, o primeiro em 56 anos, marca um momento seminal na trajetória política da Somália, um país que, desde a última eleição directa em 1969, tem sido assolado por conflitos, instabilidade governativa e fragmentação social. Este processo, lançado em abril de 2025, é um passo crucial rumo à consolidação de um sistema político mais inclusivo e representativo, com a introdução do princípio “uma pessoa, um voto” para as eleições autárquicas de junho e as legislativas e presidenciais previstas para 2026.

Contudo, a transição para o sufrágio universal enfrenta obstáculos significativos, desde ameaças securitárias até resistências socioculturais, exigindo estratégias robustas para garantir o seu sucesso. Enquanto especialista em Relações Internacionais e analista político, analiso o significado deste marco, os desafios que se colocam e as soluções que podem viabilizar a democratização somali.

Um Contexto Histórico de Fragmentação

A Somália tem vivido décadas de turbulência, marcadas pelo colapso do Estado central em 1991, pela guerra civil e pela ascensão de grupos armados, como o Al-Shabab, afiliado à Al-Qaeda. O sistema político, estruturado em torno de clãs e subclãs, tem sido tanto uma fonte de resiliência comunitária como um entrave à construção de uma governação coesa. Este modelo, que distribui poder com base em equilíbrios tribais, revelou-se incapaz de responder às aspirações de uma população jovem e urbana que clama por maior participação e transparência.

A decisão de agosto de 2024, que aprovou o sufrágio direto, reflete um reconhecimento desta realidade. O registo eleitoral em Mogadíscio, observado com filas de eleitores em bairros como Shangani, é um sinal de esperança, evidenciando o desejo de muitos somalis de exercerem os seus direitos cívicos. Este processo não é apenas técnico; é profundamente simbólico, representando uma tentativa de redefinir a identidade política da Somália, superando divisões históricas.

Desafios à Democratização

Apesar do otimismo, o caminho para eleições livres e justas está repleto de obstáculos. O primeiro e mais premente é a questão securitária. O Al-Shabab, que controla territórios significativos e tem intensificado ataques nas proximidades de Mogadíscio, constitui uma ameaça direta ao processo eleitoral. Incidentes como o recente disparo de morteiros perto do aeroporto da capital ilustram a capacidade do grupo para perturbar iniciativas governamentais. A insegurança não só compromete a logística do recenseamento e do sufrágio, mas também pode dissuadir a participação popular, minando a legitimidade do processo.

A segundo grande desafio reside na estrutura social somali. O sistema de clãs, embora profundamente enraizado, é visto por muitos como um obstáculo à equidade política. A transição para o sufrágio universal pode ser percecionada como uma ameaça por elites tradicionais, que beneficiam do status quo. Sem uma gestão cuidadosa, esta mudança poderá exacerbar tensões intercomunitárias, especialmente em regiões onde os equilíbrios de poder são frágeis.

Por fim, a capacidade institucional do governo somali é limitada. Décadas de instabilidade debilitaram as estruturas estatais, dificultando a organização de um processo eleitoral complexo. Questões como a emissão de cartões de eleitor, a criação de cadernos eleitorais fiáveis e a formação de pessoal qualificado exigem recursos técnicos e financeiros que o país, por si só, dificilmente conseguirá mobilizar.

Soluções para uma Transição Bem-Sucedida

Para que o registo eleitoral e as subsequentes eleições sejam bem-sucedidos, é imperativo adotar uma abordagem multidimensional que combine segurança, inclusão social e fortalecimento institucional. Apresento, assim, algumas soluções estratégicas:

1. Reforço da Segurança: A proteção dos eleitores e das infraestruturas eleitorais deve ser prioritária. O governo somali, com o apoio da Missão da União Africana na Somália (ATMIS), deve intensificar operações contra o Al-Shabab, criando zonas seguras para o recenseamento e o sufrágio. A cooperação com parceiros internacionais, como as Nações Unidas, pode facilitar o fornecimento de tecnologia de vigilância e inteligência para antecipar ataques. Além disso, a formação de forças policiais locais, com enfoque na proteção de civis, será essencial para gerar confiança na população.

2. Diálogo Inclusivo com os Clãs: A transição para o sufrágio universal não deve ser apresentada como uma rutura com as tradições somalis, mas como uma evolução que complementa os valores comunitários. O governo deve promover fóruns de diálogo com líderes de clãs, assegurando que as suas preocupações sejam ouvidas e que o novo sistema não marginalize grupos específicos. Campanhas de sensibilização, conduzidas em línguas locais e com recurso a meios de comunicação acessíveis, como a rádio, podem ajudar a explicar os benefícios do sufrágio direto, promovendo a adesão popular.

3.Fortalecimento Institucional: A organização de eleições credíveis exige uma Comissão Eleitoral Nacional robusta e independente. O governo deve investir na capacitação técnica desta entidade, com apoio de organizações como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A introdução de tecnologias biométricas para o registo eleitoral pode aumentar a transparência e reduzir riscos de fraude, desde que acompanhada de formação adequada para os funcionários eleitorais. Parcerias com países com experiência em processos eleitorais em contextos frágeis, como o Quénia ou o Uganda, podem oferecer lições valiosas.

4. Apoio Internacional Sustentado: A comunidade internacional tem um papel crucial a desempenhar, mas deve evitar imposições que possam ser vistas como interferência. Financiamento para o processo eleitoral deve ser canalizado através de mecanismos transparentes, garantindo que os fundos cheguem às áreas prioritárias. Além disso, missões de observação eleitoral, lideradas por organizações como a União Africana e a União Europeia, serão fundamentais para assegurar a credibilidade do processo.

5.Empoderamento da Sociedade Civil: Organizações não-governamentais e grupos comunitários devem ser envolvidos na monitorização do processo e na educação cívica. Projetos que promovam a participação de mulheres e jovens, historicamente sub-representados, podem reforçar a legitimidade do sistema democrático. A criação de plataformas para denúncias anónimas de irregularidades eleitorais também pode dissuadir práticas corruptas.

Uma Oportunidade Histórica

O registo eleitoral em Mogadíscio é mais do que um procedimento administrativo; é um ato de reconstrução nacional. A Somália encontra-se numa encruzilhada, onde a consolidação da democracia pode pavimentar o caminho para a estabilidade e o desenvolvimento, ou onde falhas no processo podem reacender conflitos latentes. O sucesso deste empreendimento dependerá da capacidade do governo para mobilizar recursos, garantir segurança e promover a inclusão, com o apoio de uma comunidade internacional comprometida, mas respeitadora da soberania somali.

Enquanto analista, acredito que este é um momento de esperança cautelosa. A determinação dos eleitores que formam filas em Mogadíscio reflete um anseio coletivo por mudança. Cabe agora às autoridades e aos seus parceiros transformar esta aspiração numa realidade tangível, construindo um sistema político que honre a diversidade e a resiliência do povo somali. A história julgará este processo não apenas pelos resultados eleitorais, mas pela capacidade de unir uma nação fragmentada em torno de um projeto comum de governação democrática.

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