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Crise da Infância Urbana: uma análise estrutural da criança em situação de rua em Angola

 “O grau de civilização de uma sociedade mede-se pela forma como ela trata as suas crianças.”

— Nelson Mandela

1. Introdução: o apelo das ruas e o silêncio das consciências

Vivemos num mundo onde o progresso tecnológico alcança os confins do universo, mas continua a falhar na missão mais básica da humanidade: proteger a infância. Milhões de crianças em todo o mundo vivem em situação de rua, privadas de afecto, saúde, educação, identidade e protecção. Angola, infelizmente, faz parte dessa realidade, onde milhares de crianças conhecidas como kixilas sobrevivem nas ruas das cidades, principalmente em Luanda, Benguela, Lubango, Huambo e Malanje.

Estas crianças não são apenas vítimas da pobreza, mas também da omissão do Estado, da desestruturação familiar, da falta de políticas públicas eficazes e da cultura do abandono. Como refere Amartya Sen (1999), “a pobreza não é apenas falta de rendimento, é a privação das capacidades básicas para viver com dignidade”.

2. A realidade angolana: rostos invisíveis entre o asfalto e a marginal

Em Angola, segundo dados do INAC (Instituto Nacional da Criança), cerca de 6.000 crianças vivem em situação de rua só em Luanda, sendo que o número nacional pode ser muito superior. Muitas são órfãs, outras fugiram de casas marcadas por violência, abusos sexuais, ou foram expulsas por alegações de feitiçaria, um fenómeno ainda presente em muitas comunidades.

A maior parte delas vive da mendicidade, do carregamento de sacos nos mercados, da lavagem de carros ou da venda ambulante. Algumas caem nas redes do tráfico humano, da exploração sexual e do recrutamento para actividades ilícitas.

Como explica Pierre Bourdieu (1998), “a miséria social não é apenas a falta de meios materiais, mas a ausência de reconhecimento e pertença social”. As kixilas não só são pobres – são ignoradas, estigmatizadas, criminalizadas.

3. Causas profundas: entre o abandono e a negligência institucional

Não se trata de uma fatalidade, mas de um fenómeno com causas concretas, entre elas:

Desigualdade socioeconómica: A concentração da riqueza e os altos índices de desemprego afundam muitas famílias na precariedade.

Cultura de abandono: Persistem práticas tradicionais que levam ao afastamento de crianças acusadas de bruxaria, principalmente em zonas periurbanas.

Falência do sistema de protecção social: Falta de abrigo seguro, políticas de acolhimento familiar, programas de reabilitação.

Educação inacessível ou ineficaz: A evasão escolar alimenta o ciclo de exclusão e marginalização.

Urbanização desordenada: A explosão dos musseques dificulta o planeamento de políticas de infância.

Desconhecimento legal: Muitos encarregados de educação e líderes comunitários desconhecem os direitos da criança consagrados na Constituição e na Lei da Criança (Lei n.º 25/12 de 22 de Agosto).

4. O cenário internacional: lições que podem iluminar Angola

A crise das crianças em situação de rua não é exclusiva de Angola. Muitos países enfrentaram este desafio e desenvolveram estratégias eficazes:

Brasil – Rede de Cuidado e Família Acolhedora

A política do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) promove centros de convivência e acolhimento familiar em vez de internatos. Os programas são articulados com a escola, serviços de saúde e formação profissional.

Índia – Educação Móvel e Conselhos de Crianças de Rua

ONGs como Butterflies e Save the Children criaram métodos como escolas móveis, conselhos de crianças e microcrédito juvenil. As crianças tornam-se protagonistas na defesa dos seus direitos.

Uganda – Reintegração comunitária com mediação tribal

O governo de Uganda, com apoio da UNICEF, lançou programas que envolvem líderes tradicionais e igrejas na reintegração familiar e no combate à acusação de feitiçaria contra menores.

Estes modelos baseiam-se naquilo que Judith Ennew (1994) denomina de “resgate da agência da criança”, ou seja, não vêem a criança como problema, mas como parte activa da solução.

5. Angola precisa de uma resposta estratégica, sustentável e humanizada

É possível – e urgente – construir um modelo angolano de prevenção, resgate e reinserção social das crianças de rua. Para isso, propomos:

1. Criação de um Programa Nacional “Nenhuma Criança na Rua”

Coordenado pelo INAC, Ministério da Acção Social, Ministérios da Educação, Saúde e Administração do Território, com apoio das igrejas, ONGs, autarquias e universidades.

2. Observatório Nacional da Criança em Situação de Rua

Mapeamento nacional, banco de dados centralizado, estudos contínuos. Só com conhecimento se constrói política eficaz.

3. Casas-lar e famílias de acolhimento

Institucionalizar casas com estrutura familiar, onde pequenos grupos de crianças vivem com cuidadores treinados, em ambientes supervisionados e afectivos. As famílias acolhedoras devem ser certificadas e apoiadas financeiramente.

4. Educação de segunda oportunidade

Escolas flexíveis, programas de alfabetização e inclusão digital para crianças e adolescentes em situação de rua. Parcerias com o ensino técnico e empreendedorismo juvenil.

5. Psicologia comunitária e apoio espiritual

Cada criança de rua traz feridas emocionais. É preciso equipas móveis com psicólogos, assistentes sociais, conselheiros religiosos e mediadores sociais.

6. Campanha nacional “KIXILA É MEU IRMÃO”

Campanhas de sensibilização nas escolas, igrejas, mercados e rádios comunitárias. Incentivar a sociedade a deixar de julgar para começar a acolher.

7. Acompanhamento judicial e cidadania legal

Criar brigadas móveis de registo civil, audiências simplificadas e defensores públicos para garantir o acesso à identidade e à justiça.

6. Um apelo à acção: ninguém solta a mão de uma criança

Cada kixila representa uma história interrompida. Uma infância roubada. Um futuro comprometido. Angola não se pode desenvolver deixando para trás a sua infância. Nenhuma política de crescimento económico será legítima se milhares de crianças continuarem a viver em caixas de papelão ou a dormir nas marginais das cidades.

Como diz Paulo Freire (1970), “a desumanização não é destino, é o resultado de estruturas injustas que podem – e devem – ser transformadas”. Que cada cidadão, governante, igreja, escola e ONG assuma a sua parte nesse compromisso.

7. Conclusão: pela infância, pela pátria, pela humanidade

A rua nunca foi berço. A infância nunca deveria ser vivida entre lixo, violência e exclusão. Um país que abandona as suas crianças abandona o seu futuro. Não podemos aceitar como normal ver uma criança deitada no cimento frio da cidade.

É tempo de transformar a dor em política, o abandono em responsabilidade, a invisibilidade em cidadania. E que o nome kixila deixe de ser sinónimo de desamparo, para tornar-se símbolo de superação, esperança e inclusão.

“Nenhuma criança nasce para viver na rua. A rua é a consequência da ausência de todos nós.”

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