A terra, enquanto recurso estratégico, desempenha um papel fundamental na estruturação económica, social e institucional de qualquer nação. Em Angola, apesar da sua vasta extensão territorial e do intenso crescimento urbano nas últimas décadas, o sistema de concessão, titularidade e registo predial continua preso a métodos fragmentados, burocráticos e frequentemente desactualizados. Esses processos alimentam a informalidade, promovem a exclusão social e geram uma série de desafios que prejudicam o desenvolvimento do país, tanto a nível social quanto económico. A ausência de um modelo moderno e unificado de governação fundiária tem gerado conflitos, desorganizado o ordenamento do território, limitado investimentos e comprometido seriamente a justiça fiscal. Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a necessidade urgente de Angola modernizar e integrar os seus processos fundiários, com base em boas práticas internacionais, na transformação digital e no reconhecimento do papel das autoridades tradicionais como parte fundamental do ecossistema legal de acesso à terra.
A Terra como Pilar da Organização Territorial
A questão da terra em Angola é tão antiga quanto os próprios conflitos sociais e urbanos que o país ainda enfrenta. A terra é um dos pilares do desenvolvimento, mas em Angola continua a ser um campo de disputa, devido à falta de uma regulamentação clara, eficaz e moderna. A ausência de um sistema eficiente de concessão, titularidade e registo predial compromete não só a segurança jurídica dos cidadãos, mas também a eficácia do planeamento urbano, o equilíbrio ambiental e a arrecadação fiscal. Em um cenário global onde a transformação digital tem sido uma das principais ferramentas de desenvolvimento, Angola precisa, com urgência, avançar para a modernização dos seus processos fundiários. A unificação e digitalização dos processos fundiários são não apenas desejáveis, mas essenciais para a criação de cidades inclusivas, produtivas e fiscalmente sustentáveis.
Desafios da Informalidade e Exclusão Social
Segundo De Soto (2001), “a informalidade é o maior entrave ao crescimento económico nas nações em desenvolvimento, pois impede que os bens imóveis sejam transformados em capital.” Esta lógica aplica-se de forma dramática a Angola, onde milhares de famílias vivem em terrenos adquiridos por via informal, sem qualquer documento legal reconhecido pelo Estado. Essa realidade não só diminui o valor económico dos terrenos, como também limita o acesso da população ao crédito bancário e impede os municípios de usufruírem de uma base tributária sólida e eficaz. Como resultado, a informalidade continua a ser um dos principais obstáculos ao crescimento económico, perpetuando a exclusão social e a desigualdade territorial.
Avanços e Iniciativas em Curso
Apesar dos desafios, o país tem feito alguns avanços importantes em relação à governança fundiária. O Plano Nacional de Urbanismo e Habitação (PNUH), por exemplo, traça metas para combater a ocupação desordenada e promover a habitação condigna para a população. Projectos-piloto em Luanda, como os desenvolvidos nos bairros da Vila Verde, Cacuaco e Zango, demonstram que é possível avançar na legalização de ocupações urbanas com a participação comunitária e suporte institucional. Mais recentemente, com apoio do Banco Mundial, iniciou-se um processo de modernização do Cadastro Predial Nacional, que inclui ferramentas como Sistemas de Informação Geográfica (SIG), levantamentos por drones e bases de dados digitais georreferenciadas.
Fragmentação e Falta de Integração dos Processos
No entanto, essas iniciativas continuam fragmentadas. Faltam integração entre os órgãos responsáveis pela concessão de terras (administrações municipais e INOTU), os serviços de registo (Conservatórias e Notariado) e os mecanismos de cobrança fiscal (AGT e administrações locais). Segundo Fernandes (2008), “sem uma visão integrada da governação fundiária, os processos tornam-se redundantes, caros, morosos e sujeitos a corrupção.” Este cenário tem resultado em ineficiências que comprometem a eficácia do sistema como um todo e impedem o alcance de objectivos fundamentais, como a formalização do uso da terra, a modernização do cadastro e a arrecadação de impostos.
O Papel das Autoridades Tradicionais
Além da modernização dos processos formais, é fundamental reconhecer e integrar as autoridades tradicionais como actores legítimos na governação da terra, especialmente nas zonas rurais e periurbanas. Em muitos contextos africanos, a posse da terra é historicamente mediada por chefes tradicionais, que desempenham um papel crucial na organização e nas normas de posse e uso da terra nas suas comunidades. Ignorar essa realidade pode gerar resistência, conflitos e descredibilizar os esforços do Estado. A experiência de Gana, por exemplo, demonstra como a coabitação entre o sistema estatal e os chefes locais tem acelerado a legalização de terras, com a criação de Secretarias de Administração de Terras Tradicionais, que foram integradas ao cadastro nacional. Em Moçambique, a legislação reconhece o direito consuetudinário sobre a terra, conferindo às comunidades o poder de emitir deliberações comunitárias com valor legal. Angola, à luz da Constituição e da Lei de Terras, tem espaço para aprofundar essa integração, permitindo que as autoridades tradicionais participem de forma estruturada no processo de identificação, validação e intermediação de concessões, em articulação com os serviços municipais e provinciais. Este é um passo crucial para garantir a aceitação social, a segurança jurídica multiforme e a harmonização entre o direito costumeiro e o direito formal.
Exemplos Internacionais de Sucesso
O exemplo de países como Ruanda ilustra como é possível avançar com rapidez e eficácia na modernização da governança fundiária. Com o apoio de tecnologias de baixo custo e processos participativos, Ruanda conseguiu registar mais de 10 milhões de parcelas de terra em menos de cinco anos, integrando todos os dados num sistema digital centralizado. O acesso à informação passou a ser feito através de telemóveis, e os títulos digitais reduziram significativamente os conflitos fundiários e aumentaram a arrecadação fiscal local. Da mesma forma, na Índia, o programa SVAMITVA utiliza drones para mapear vilas rurais e entregar títulos digitais aos moradores, facilitando a formalização das propriedades rurais e o acesso aos serviços financeiros.
Proposta de Um Sistema Nacional de Informação Fundiária e Predial
Em Angola, a proposta de um Sistema Nacional de Informação Fundiária e Predial torna-se não apenas desejável, mas inevitável. Este sistema deve integrar os seguintes elementos essenciais:
1. Concessão Legal– Processos simplificados e digitalizados para a atribuição de terrenos por via das administrações locais, com critérios claros e base cartográfica actualizada.
2. Titularidade– Emissão de títulos com validade jurídica, com apoio de georreferenciamento e reconhecimento automático pelo sistema nacional.
3. Registo Predial – Plataforma digital única onde todas as propriedades estejam registadas, com código único associado ao proprietário e à localização do terreno.
4. Cobrança Fiscal – Associação directa do registo ao sistema tributário municipal e nacional, com cálculo justo do imposto predial, com base em valor venal e zona geográfica.
O Impacto Social e Económico da Modernização Fundiária
O impacto da modernização do sistema fundiário vai muito além do aspecto económico e fiscal. A formalização da posse da terra oferece uma segurança jurídica que reduz conflitos, valoriza os bens imóveis e fomenta investimentos tanto públicos quanto privados. Roy (2011) afirma que “a formalização da terra é um acto de cidadania, que transforma o espaço em território e o morador em sujeito de direitos.” Além disso, a regularização fundiária contribui para o fortalecimento do vínculo entre o cidadão e o Estado, tornando a terra não apenas um bem privado, mas também um direito público, com implicações profundas para a justiça social e a igualdade.
Caminhos para a Implementação de um Sistema Integrado e Eficiente
A proposta de modernização e unificação dos sistemas fundiários em Angola deve incluir, além da digitalização e simplificação dos processos, uma série de estratégias para garantir a sua efectividade:
Uso de tecnologia digital de baixo custo: Implementação de aplicativos móveis, portais digitais e drones de mapeamento para acelerar o processo de registo e tornar a informação acessível à população.
Participação comunitária: Promoção de cadastros participativos, liderados por comissões de moradores com formação técnica, para assegurar a inclusão social e a aceitação das reformas.
Capacitação dos técnicos municipais e dos serviços de registo: Formação contínua para garantir que os processos sejam conduzidos de forma eficiente e ética.
Parcerias com universidades, ONGs e o sector privado: Parcerias estratégicas para acelerar os processos e incorporar inovações tecnológicas.
Criação de centros móveis de registo fundiário: Para atender zonas periféricas e rurais com dificuldade de acesso.
Finalmente, a modernização do sistema fundiário angolano é uma necessidade urgente e não pode ser adiada. A transição de uma abordagem baseada na informalidade para uma estrutura legal e organizada para a governação da terra permitirá ao Estado aumentar a arrecadação fiscal de forma justa, fortalecer o poder local, ordenar as cidades e devolver dignidade aos cidadãos. Mais importante ainda, é uma medida que permitirá que a terra se torne uma base sólida para a cidadania, justiça fiscal e desenvolvimento sustentável. Contudo, essa transformação exige visão estratégica, vontade política e coragem para enfrentar os interesses instalados na desordem fundiária. Como afirmou Amartya Sen (1999), “o desenvolvimento é, antes de tudo, a expansão das liberdades reais das pessoas” — e nenhuma liberdade é mais concreta do que a de possuir legalmente o espaço onde se vive e se constrói a vida.
O conteúdo Governação fundiária em Angola: desorganização, informalidade e o preço da Justiça Fiscal aparece primeiro em Correio da Kianda – Notícias de Angola.
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