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Ibrahim Traoré e a África que quer libertar: entre coragens, riscos e lições da História 

A ascensão de Ibrahim Traoré ao poder no Burkina Faso, em Setembro de 2022, inscreve-se num cenário geopolítico marcado por transformações sociais e políticas profundas no continente africano, particularmente na região do Sahel. Longe de representar um evento isolado, a sua liderança ressoa com o clamor de uma juventude africana cada vez mais consciente, politicamente mobilizada e insatisfeita com o statu quo herdado do colonialismo e perpetuado por elites políticas alinhadas a interesses externos (Amin, 2004; Diop, 2019).

Traoré emerge como símbolo de uma nova geração de líderes que, movidos por ideais pan-africanistas e soberanistas, propõem uma rutura com as estruturas neocoloniais. Todavia, essa luta – embora legitimada pelo desejo colectivo de autodeterminação, não é inédita. Para compreendê-la em sua complexidade, é necessário revisitar as lições da história e refletir, com criticidade, sobre os desafios da governança transformadora na África contemporânea.

1. A MEMÓRIA DOS SONHADORES SILENCIADOS

A visão de Traoré está profundamente enraizada no legado de Thomas Sankara, cuja breve presidência (1983–1987) foi marcada por um programa político de forte orientação nacionalista, anti-imperialista e socialista. Sankara defendia uma África autossuficiente e culturalmente emancipada, afirmando que “quem alimenta você, controla você” (Harsch, 2014). Antes dele, nomes como Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere e Amílcar Cabral já haviam delineado projectos de soberania continental e integração regional, sistematicamente obstaculizados por ingerências externas e conspirações internas (Nzongola-Ntalaja, 2002).

A persistência de estruturas extrativas no continente é evidente. De acordo com dados do Grupo de Alto Nível sobre Fluxos Financeiros Ilícitos na África (2020), liderado por Thabo Mbeki, estima-se que o continente perde anualmente mais de 88,6 mil milhões de dólares em fluxos financeiros ilícitos, número que ultrapassa a ajuda externa recebida no mesmo período. Além disso, Sylla (2017) destaca que mais de 500 mil milhões de dólares deixam o continente anualmente sob forma de lucros repatriados, serviço da dívida e evasão fiscal corporativa.

2. LIÇÕES DO LESTE E DO SUL GLOBAL

Enquanto África permaneceu presa a esquemas dependentes das suas ex-potências coloniais, países como Singapura, Coreia do Sul e, mais recentemente, o Vietnã, construíram trajetórias de desenvolvimento baseadas em industrialização, educação e políticas públicas estratégicas. Em particular, o modelo de Singapura, liderado por Lee Kuan Yew, demonstra que a escassez de recursos naturais não impede o crescimento, desde que haja um Estado forte, meritocracia, investimento em conhecimento e combate efetivo à corrupção (pôde-se ler em; Sen, 1999; Rodrik, 2007).

A China, por sua vez, soube articular uma inserção soberana na economia global, mantendo o controlo estratégico sobre setores-chave, promovendo uma política industrial activa e reduzindo a pobreza extrema em tempo recorde. O “milagre asiático”, como definido pelo Banco Mundial (1993), pode não ser replicável em todos os seus detalhes, mas oferece pistas valiosas para países africanos que desejam desenvolver-se com soberania.

3. ECOANDO A VOZ DOS INTELECTUAIS AFRICANOS

A crítica ao modelo de dependência tem sido sustentada, há décadas, por intelectuais africanos. Samir Amin (2004) defendeu a necessidade de um “desligamento estratégico” (déconnexion) do sistema capitalista mundial, como meio de criar espaços de desenvolvimento autocentrado. Ngũgĩ wa Thiong’o (2009), por outro lado, insiste na descolonização das mentes como passo essencial para a verdadeira libertação.

Carlos Lopes (2019), economista moçambicano e ex-secretário executivo da Comissão Económica da ONU para África, sustenta que o continente deve abandonar o modelo extrativo-exportador, apostando na transformação local de matérias-primas, na diversificação produtiva e na industrialização baseada em inovação.

A Zona de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA), em vigor desde 2021, representa uma tentativa concreta de realizar o sonho de integração econômica intra-africana. Com um mercado potencial de 1,4 mil milhões de pessoas, a AfCFTA pode catalisar o crescimento endógeno e fortalecer a posição do continente nas negociações globais (UNECA, 2023).

4. ENTRE CORAGEM E COMPLEXIDADES: A FIGURA DE IBRAHIM TRAORÉ

A liderança de Ibrahim Traoré deve ser compreendida no seu contexto. Jovem (com apenas 34 anos à data da sua tomada de posse), militar e carismático, ele galvaniza uma juventude frustrada com décadas de corrupção, pobreza e submissão. Seu discurso é assertivo e insubmisso, o que lhe valeu apoio popular, mas também críticas quanto à sua centralização do poder e à relação conflituosa com a oposição (International Crisis Group, 2023).

Traoré, como outros antes dele, precisa transformar o discurso em políticas públicas sólidas. A luta contra o terrorismo, por exemplo, requer não apenas repressão militar, mas também justiça social, educação, inclusão juvenil e desenvolvimento rural. A segurança duradoura só é possível com Estados funcionais e sociedades coesas (Akindès, 2021).

5. UMA NOVA FORÇA POLÍTICA REJUVENESCIDA

No âmago das recentes mudanças políticas no Sahel, emerge uma nova força jovem que rejeita o cinismo político e exige participação, transparência e soberania real. No Mali, Níger e Burkina Faso, vemos jovens engajados, não apenas nas ruas, mas também em redes sociais, universidades e espaços de produção cultural e intelectual.
No entanto, a juventude africana enfrenta desafios estruturais: desemprego crónico, sistemas educativos frágeis, exclusão política e repressão estatal. Para que essa nova força política não se transforme em mais uma geração sacrificada, é essencial que os Estados promovam reformas democráticas inclusivas, políticas públicas eficazes e espaços institucionais para a juventude actuar com legitimidade.

Contudo, a soberania africana exige:

Investimento público em educação de qualidade, especialmente em áreas estratégicas como ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM), para quebrar o ciclo de dependência tecnológica (World Bank, 2022).

Diversificação económica com ênfase na industrialização leve, infraestrutura regional e comércio intra-africano (Rodrik, 2007).

Fortalecimento das instituições democráticas e combate à corrupção, garantindo checks and balances e Estado de Direito (Acemoglu & Robinson, 2012).

Planeamento estratégico de longo prazo, baseado em dados, ciência e participação cidadã (Mkandawire, 2011).

Integração regional efectiva, como a promovida pela AfCFTA e pela Agenda 2063 da União Africana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A luta de Ibrahim Traoré é, sem dúvida, corajosa e inspiradora. Contudo, para que o sonho de uma África livre se concretize, é necessário mais do que retórica: requer uma mudança estrutural nas políticas económicas, na cultura política e na gestão pública. A juventude africana, mais consciente e engajada, pode ser o motor dessa transformação, desde que encontre instituições abertas à mudança e lideranças comprometidas com o bem comum.

Traoré não é um herói infalível, mas é parte de uma história que ainda está a ser escrita. E essa história poderá ter um desfecho diferente se for guiada não apenas pela emoção e pelo simbolismo, mas pela razão, pela ciência e pela ética pública.

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