A pena de prisão, longe de se restringir à simples privação de liberdade, carrega consigo um imperativo moral e jurídico profundamente enraizado: a reintegração do condenado na sociedade. Em sociedades modernas e democráticas, o sucesso de um sistema penal não é medido pela severidade das penas, mas pela capacidade de devolver o indivíduo ao convívio social de maneira digna, produtiva e, acima de tudo, transformada. A verdadeira eficácia de um sistema de justiça não reside no isolamento, mas na recuperação e na educação para a liberdade.
Neste contexto, os serviços prisionais desempenham um papel central como garantidores da execução penal e promotores ativos da reintegração social. O desafio da reabilitação e reintegração dos reclusos em Angola assume uma relevância ainda maior, considerando os obstáculos sociais, económicos e institucionais que o país enfrenta. Estes desafios exigem uma reflexão profunda e uma reformulação dos paradigmas atuais da justiça penal, que devem ir além da punição e abraçar a reintegração como estratégia de segurança pública e desenvolvimento social.
1. A Evolução do Conceito de Execução Penal e Reintegração Social
Historicamente, a prisão surgiu como uma alternativa às penas físicas, como a tortura ou a morte. No entanto, por muito tempo, a prisão foi vista apenas como uma forma de isolamento, onde o condenado era deixado à margem da sociedade. Era um castigo físico e psicológico, muitas vezes sem perspectiva de recuperação.
O pensamento iluminista, encarnado por figuras como Cesare Beccaria e Jeremy Bentham, desafiou esta visão arcaica. Beccaria, na sua obra seminal Dos Delitos e das Penas (1764), argumenta que a pena deve ser proporcional ao delito e orientada para a prevenção, e não para a vingança. Segundo ele, o sistema penal deve ser um meio de correção e não de punição. Bentham, por sua vez, com a sua teoria utilitarista, defendia que as instituições de justiça deveriam buscar maximizar o bem-estar social, entendendo a prisão como uma oportunidade para reformar comportamentos desajustados.
No século XX, Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1975), questionou profundamente a evolução do sistema prisional. Para Foucault, a prisão não se limitava a punir, mas tornava-se um mecanismo de controle social, reproduzindo desigualdades e perpetuando a exclusão. A prisão, sem políticas de reintegração, apenas ampliava a marginalização. Para Foucault, a verdadeira função da prisão deveria ser a educação para a liberdade, permitindo que o indivíduo retornasse à sociedade mais consciente, não como um excluído, mas como um cidadão com direitos e responsabilidades.
Hoje, ao falarmos de execução penal, devemos compreender que a prisão não deve ser apenas uma forma de reclusão, mas um meio para promover a reintegração do recluso à sociedade, como nos ensina Norberto Bobbio (1987): “A democracia não se mede apenas pelo respeito ao voto, mas também pela dignidade com que trata seus vencidos, inclusive os criminosos.”
2. Modelos Internacionais de Serviços Prisionais: Exemplos de Boas Práticas
Noruega: O Modelo Humanista
A Noruega é frequentemente citada como exemplo de um sistema prisional humanista e eficaz. O princípio de “normalidade”, ou seja, tentar fazer com que a vida na prisão seja o mais próxima possível da vida fora dela, tem mostrado resultados extraordinários na reintegração dos reclusos. A prisão de Halden, inaugurada em 2010, é uma das mais modernas e focadas na reabilitação, oferecendo aos reclusos programas de formação, atividades culturais, acesso à educação superior e apoio psicológico contínuo.
O criminologista Nils Christie resume bem esta filosofia ao afirmar: “Quanto menos diferença houver entre a vida na prisão e a vida fora dela, menor será o impacto criminógeno do encarceramento” (Christie, 1981). Este modelo tem demonstrado ser um dos mais eficazes na redução da reincidência criminal, permitindo que os reclusos se reintegrem na sociedade de maneira produtiva e respeitável.
Alemanha: Trabalho e Educação como Pilares da Reintegração
Na Alemanha, a execução penal está intimamente ligada ao trabalho e à educação. A Lei de Execução Penal alemã (Strafvollzugsgesetz) estipula que “a execução da pena deve preparar o recluso para uma vida em liberdade responsável e sem cometer crimes”. O trabalho na prisão não é apenas uma forma de manter os reclusos ocupados, mas uma oportunidade para desenvolver competências e adquirir experiência profissional. Além disso, as condições de vida nas prisões alemãs são mais voltadas para a reintegração, com programas educacionais e apoio psicológico para facilitar a adaptação pós-prisão.
Canadá: Programas de Reintegração Pós-Prisional
O Canadá, por sua vez, adota uma abordagem de reintegração gradual, com programas como o CORCAN, que oferece formação profissional e oportunidades de trabalho comunitário supervisionado. Além disso, a política de “liberdade condicional gradual” prepara os reclusos para uma reintegração progressiva na sociedade. Segundo Anthony Doob (2001), esta abordagem tem sido fundamental para reduzir a reincidência, proporcionando aos reclusos uma transição mais suave para a vida livre e evitando o retorno ao crime.
3. O Modelo de Serviços Prisionais em Angola: Realidade e Desafios
Em Angola, a Direcção Nacional dos Serviços Prisionais tem a responsabilidade de assegurar a custódia dos detidos, a execução das penas e a promoção da reintegração social. No entanto, os desafios enfrentados pelo sistema prisional angolano são múltiplos e complexos:
Sobrelotação carcerária: A sobrelotação das prisões é um dos principais problemas, resultando em condições desumanas de vida para os reclusos e tornando difícil a implementação de programas de reintegração eficazes.
Déficit de programas educativos e profissionais: Existem poucas iniciativas de formação e trabalho dentro das prisões, o que prejudica a reabilitação dos reclusos e dificulta a sua reintegração na sociedade após o cumprimento da pena.
Escassez de profissionais especializados: Angola enfrenta uma grave falta de profissionais qualificados, como psicólogos, assistentes sociais e educadores prisionais, o que compromete o acompanhamento e a reabilitação dos reclusos.
Estigma social: Os ex-reclusos em Angola enfrentam sérias dificuldades para se reintegrar na sociedade devido ao estigma social. Este estigma agrava a marginalização e cria barreiras adicionais para a sua reintegração produtiva.
Apesar de algumas ações pontuais, como programas de alfabetização e oficinas técnicas em certos estabelecimentos, Angola carece de uma política nacional estruturada que integre ações voltadas para a reabilitação e reintegração dos reclusos.
4. A Reintegração Social como Estratégia de Segurança Pública e Desenvolvimento
A experiência internacional é clara: sistemas prisionais focados na reabilitação dos reclusos são mais eficazes na redução das taxas de reincidência. Em contrapartida, sistemas que priorizam apenas a punição acabam por perpetuar a exclusão social e o ciclo de criminalidade.
Loïc Wacquant (2001) ressalta que “a exclusão sistemática dos ex-reclusos reforça a marginalidade urbana e gera insegurança permanente”. Portanto, investir na reintegração dos reclusos não deve ser visto apenas como uma questão de direitos humanos, mas como uma estratégia fundamental de segurança pública, desenvolvimento económico e estabilidade social. Esses são elementos essenciais para o progresso de Angola, um país jovem em processo de consolidação democrática.
5. Propostas para uma Reforma Sustentável dos Serviços Prisionais Angolanos
Diante dos desafios enfrentados pelo sistema prisional, uma série de medidas devem ser adotadas para transformar os serviços prisionais angolanos e garantir que o processo de execução penal seja eficaz na reintegração dos reclusos. As principais propostas incluem:
Adopção de um novo paradigma legislativo: É imperativo criar uma nova Lei de Execução Penal que promova os princípios da dignidade humana e da ressocialização, garantindo a formação contínua dos reclusos e o seu acompanhamento pós-prisão.
Humanização das infraestruturas prisionais: Para reduzir a sobrelotação e melhorar as condições de vida nas prisões, é necessário promover reformas estruturais que garantam um ambiente mais humano e favorável à reabilitação.
Criação de um Instituto Nacional de Reintegração Social: Este instituto seria responsável por planejar, implementar e avaliar projetos de reintegração social, com a participação de diversos setores da sociedade, incluindo a educação, a saúde e o emprego.
Fortalecimento da articulação interministerial: A integração de esforços dos ministérios da Justiça, Interior, Educação, Saúde, Trabalho e Emprego é fundamental para criar uma abordagem mais coordenada e eficaz para a reintegração social dos ex-reclusos.
Campanhas de combate ao estigma: A sociedade precisa ser sensibilizada para o acolhimento e a integração dos ex-reclusos, combatendo o estigma social que dificulta a sua reintegração.
Parcerias público-privadas: Incentivar as empresas a participar na formação e na criação de oportunidades de emprego para os ex-reclusos, garantindo que eles possam reconstruir suas vidas de forma digna.
Finalmente, a qualidade de um sistema prisional reflete o grau de civilização de uma nação. Punir sem reabilitar é perpetuar a exclusão e a insegurança, criando um ciclo vicioso de criminalidade e marginalização. Angola, ao almejar uma sociedade mais justa e inclusiva, deve transformar os serviços prisionais em verdadeiros agentes de transformação social, garantindo que a execução penal seja orientada para a reintegração e não apenas para a punição.
Como disse Nelson Mandela: “Não é o encarceramento que transforma o homem, mas a esperança de que, mesmo depois da queda, se pode levantar e caminhar de novo.”
É essa esperança que Angola deve cultivar, tanto para os reclusos quanto para a sociedade, como um todo, e para o futuro de sua Nação.
O conteúdo Sistema prisional angolano: castigo ou reintegração social? aparece primeiro em Correio da Kianda – Notícias de Angola.
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